- Ser pobre é foda. Agora, ser pobre no DF e depender de transporte público, é foda demais!
Esse era o meu pensamento frequente nas paradas e nos ônibus. Eu odiava aquilo tudo. A espera sem fim. Sem saber se o ônibus tava atrasado ou adiantado. O calor do cerrado. Cheio de maluco e de gente carente. Tinha vez que eu preferia gastar o dinheiro da passagem com um lanche e andar 40 minutos até em casa fugindo dos mala e dos maluco, só pra não pegar ônibus. Chegar em casa com meus bens intactos era uma vitória pra rebeldia sem causa que habitava em mim. Bons tempos.
Na minha época, os ônibus eram quase todos velhos, a gente ainda usava dinheiro ou vale transporte. Era sempre bom andar com o dinheiro trocado, porque do contrário, o cobrador podia ficar te “devendo" o troco. Quando era na ida, as vezes tu tinha que pegar grana emprestada pra voltar. E na volta tu não ia querer deixar essa grana toda lá. Com 20 centavos, dava pra comprar pelo menos uns 2 chiclete, tu não ia querer ficar sem isso. A vida era amarga e qualquer doce era um alívio.
Outra coisa, o baú só vivia lotado. Você ia quase sempre em pé. Haviam ainda as regras não-escritas de conduta do transporte público. Por exemplo: Você deu sorte. Ficou em pé perto de alguém que levantou e tu herdou aquele lugar. Maravilha! Agora tem um porém, se chegou um idoso/deficiente/mulher grávida/pessoa enferma perto de você. Tu vai precisar ceder aquele lugar ou conviver com amargo julgamento nas palavras e pensamentos de todos à volta até fim da sua viagem.
Tem ainda os maluco/pessoas carentes. Sabe aquela pessoa que só porque sentou do teu lado acha que é teu amigo de anos e tá te contando a vida dela toda e tu nem falou nada ainda. Tu só olhou pra ela e ouviu o que ela tava falando, e agora tá com vergonha de desviar o olhar porque é falta de educação, né? Pode não. Pior ainda é a pessoa que só porque cruzou olhar contigo já veio, se apresentou e tá há meia hora tentando te convencer que tu precisa aceitar Jesus, adotar uma criança ou fazer yoga, porque isso mudou a vida dela e tu devia mudar a sua vida também. Afinal de contas a gente se encontrou no fundo do poço.
Além disso tinha o comércio e os pedintes itinerantes. Tinha o cara que vendia amendoim. Que inclusive pagava a passagem pro cobrador e pro motorista com amendoim e podia entrar e sair pela porta de trás numa boa. Tinha o cara dos churros. Frios, mas ainda assim churros! Tinha a galera das balas e doces. Tinha os pano de prato e tapete de crochê da tia. Tinha os doente pedindo dinheiro pra remédio. As 10 criança passando debaixo da catraca enquanto a mãe pedia dinheiro pra pagar a passagem e alimentar as criança. Tinha a água, cerveja e refrigerante. Tinha o picolé, sorvete e dindin. Tinha de tudo, só tinha que pagar. E eu só tinha o dinheiro da passagem e as vezes azar, muito azar.
- Se pelo menos eu tivesse trocado o dinheiro da passagem, dava pra eu comprar um dindin desse. Que arrependimento.
Pra mim, só tinha duas pessoas que absolutamente não queria ver no ônibus: Os assaltantes e as pessoas que eu carinhosamente apelidava de pastores do busão. Pra minha sorte, eu só presenciei a última categoria. Mas cara, eles me tiravam do sério. Muito. O pastor do busão não necessariamente é um religioso. Esse tipo de pessoa gosta de uma coisa: Atenção. O pastor do busão é aquela pessoa, que pra fazer o corre dela, ela precisa garantir que todos a bordo estejam ouvindo e, de preferência, vendo bem. Seja pra pedir dinheiro, abençoar os transeuntes ou vender alguma coisa eles precisam primeiro de atenção. Eles falam alto. Chegam perto de que não está olhando. Fazem perguntas retóricas. São eloquentes. E estão sempre querendo nutrir a soberba, pena, culpa, raiva ou o medo dos que ali estão. O meu maior inimigo entre todos os pregadores do busão era o cidadão que entrava e já soltava um:
- Bom dia/tarde/noite. Eu gostaria de um momento da sua atenção. Eu podia estar matando ou roubando mas eu estou aqui humildemente pedindo. Eu acabei de sair da Papuda…
Era isso acontecer e eu sentia raiva efervescer o meu coração. Ódio. Se minha vida fosse um seriado a trilha sonora desse momento seria uma música do Matanza. E me levantaria e sacaria a minha arma mais letal, a minha palavras. Começaria baixinho até chegar no mesmo tom de voz da pessoa, com um sorriso de psicopata no rosto e proferiria as palavras de ódio ensaiadas nas outras vezes que precisei escutar esse discurso:
- Pra começar, ninguém aqui tava matando, roubando ou pedindo antes de você chegar. Outra, tu só tá pedindo porque você é um inútil. Se tu fosse bandido bom, não teria parado na Papuda. Numa hora dessa você estaria numa boa em casa, trabalhando ou num congresso com os outros bandidos. Outra coisa, eu te conheço, nem bandido tu é. Já te vi tentar jogar essa mesma conversa quando eu tava voltando a pé pra casa. Tu não lembra mas tu mora perto da minha casa seu otário. E eu sei que teu único problema é que tu é um preguiçoso, que usa tudo que tu ganha com merda. Tu nem tá fedendo mas todo mundo aqui já percebeu que tu é só isso, um merda.
Depois disso eu daria um golpe de caratê no merda e deixaria ele inconsciente. O jovem que estaria sentado no banco próximo cederia o lugar pro merda sentar. Todos os passageiros do ônibus começariam uma roda punk ao som do countrycore que ainda estaria tocando. E o episódio terminaria com o ônibus andando em direção ao por do sol enquanto deixava pra trás o merda inconsciente na parada de ônibus à esperar a ambulância chegar. Fim.